À luz da leitura crítica de Lilia Schwarcz, o bicentenário de Pedro 2º revela um reinado que perpetuou o atraso escravocrata, criou uma elite parasitária e ignorou crises internas enquanto o monarca viajava pelo mundo
por Cezar Xavier
Hoje, terça-feira, dia 2 de dezembro de 2025, o Brasil celebra os 200 anos do nascimento de Dom Pedro 2º. O bicentenário reacenderá a imagem do “monarca culto, civilizado e ilustrado”, sustentada por parte da historiografia francamente laudatória e pelo imaginário nacional — uma figura paternal que teria guiado o país com equilíbrio e modernidade.
Em meio à farta literatura que alimenta o mito, torna-se fundamental deslocar o foco do pedestal para o chão da história, por meio da análise original da antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz em As Barbas do Imperador, Dom Pedro II – Um Monarca nos Trópicos. Nesta leitura iconoclasta, o Brasil encontra um soberano tão construído quanto o próprio mito da monarquia tropical.
A obra se tornou referência justamente por apresentar um ponto de vista inovador em contraste com representação encantada de Pedro 2º em pesquisas de Pedro Calmon, Luís Martins, Ricardo Henrique Salles, Eduardo Bueno, Hélio Viana, José Marijeso Alencar Benevides, ou ainda estrangeiros como Dana Munro, Thomas Skidmore e Roderick Barman. Schwarcz não examina apenas o homem, mas a máquina simbólica que o rodeou: um império fabricado para parecer estável, moderno e moralmente superior — embora estivesse assentado em bases profundamente desiguais, escravocratas e politicamente frágeis.
O “imperador sábio” e o país escravocrata: o abismo entre imagem e prática
Para Schwarcz, a monarquia brasileira investiu pesadamente na produção de uma imagem civilizatória. Pedro 2º era fotografado, pintado e descrito como um governante europeu transplantado para os trópicos: leitor voraz, patrono das artes, cientista amador e exemplo de moderação.
Mas a realidade social do Brasil do Segundo Reinado invalidava qualquer pretensão civilizatória. Sob seu governo, o país atrasou ao máximo a abolição da escravidão, tornando-se o último das Américas a extingui-la formalmente em 1888. O imperador, embora pessoalmente contrário ao cativeiro em certos discursos privados, não confrontou o pacto político que sustentava o Império: a dependência de uma elite escravocrata resistente a mudanças.
Schwarcz enfatiza que o prestígio internacional e o verniz cultural do monarca funcionavam como uma fachada simbólica, mascarando o que ela chama de “civilização possível”, limitada pela escravidão e pelas estruturas arcaicas que Pedro II jamais enfrentou.
A dissociação entre imagem e realidade: o mito da “civilização”
Schwarcz demonstra que D. Pedro 2º foi meticulosamente moldado como símbolo de civilização, ciência e ordem — um “monarca ilustrado” que contrastava com o caos republicano ao redor. Contudo, essa imagem era amplamente dissociada da realidade brasileira. O imperador cultivava uma erudição superficial, mais voltada à exibição do que à transformação concreta do país. Ao mesmo tempo que se apresentava como mecenas das artes e das ciências, ignorava deliberadamente as tensões políticas e sociais que se agravavam, especialmente em torno da escravidão e da centralização do poder.
Como destaca a autora, D. Pedro 2º era um “imperador cinzento em uma terra de sol tropical” (expressão de Gilberto Freyre citada no livro), cuja postura “burguesa” — com cartola, jaquetão preto e livro sob o braço — desconectava-o do imaginário popular. Enquanto se europeizava, perdia ressonância local, tornando-se um monarca “dos outros”, distante dos trópicos que deveria representar.
Elite parasitária: a monarquia que governava para poucos
O retrato crítico de Schwarcz destaca que o Segundo Reinado consolidou uma elite que vivia do trabalho escravizado e da renda agrária, reproduzindo uma ordem senhorial com pouquíssima mobilidade social.
Essa elite — “parasitária, dependente e autorreferente”, nos termos de leituras derivadas da obra — encontrou em Pedro 2º um mediador perfeito: culto, mas político tímido; moderno na aparência, mas conservador na prática. Ele manteve a estrutura que a favorecia, garantindo estabilidade para cima enquanto a desigualdade se aprofundava para baixo.
Um dos aspectos mais críticos apontados por Schwarcz é a atuação tímida e ambígua de D. Pedro 2º em relação à abolição da escravidão. Embora afirmasse ser contrário à escravidão, o imperador evitou usar plenamente seu Poder Moderador para acelerar o fim do sistema, preferindo adotar a estratégia de “deixar correr, deixar passar”, conforme observa a autora. Isso revela não apenas uma postura conservadora, mas também uma priorização da estabilidade das elites escravistas em detrimento da justiça social.
Essa ambiguidade teve consequências duradouras: adiou reformas estruturais essenciais e deixou um vácuo moral que a República herdaria sem respostas. Ao não atacar frontalmente a escravidão antes que se tornasse uma crise explosiva, o Império legou ao Brasil uma cidadania esquiva e fragmentada, fundada sobre desigualdades raciais profundas.
A monarquia tropical, portanto, não foi um regime que tentou civilizar o país, mas um regime que buscou civilizar sua própria imagem, enquanto preservava um núcleo de poder excludente e retrógrado.
Viagens ao exterior: o imperador ausente e as turbulências internas
Um dos elementos mais expositivos do mito imperial, segundo Schwarcz, são as longas viagens de Pedro 2º ao exterior — frequentemente tratadas como jornadas culturais, mas que revelam um monarca distante e desconectado da realidade política nacional.
Schwarcz sublinha que, com o tempo, D. Pedro 2º se isolou cada vez mais da vida política cotidiana, preferindo viagens ao exterior, saraus literários e interlocuções com intelectuais europeus. Esse distanciamento foi agravado por sua descrença nas instituições nacionais e por sua crescente irritação com a “tacanha realidade nacional”, como escreveu em seus diários.
O elitismo cultural — aliado à falta de articulação com setores emergentes da sociedade, como a classe média urbana e os militares modernizados — contribuiu diretamente para o colapso da monarquia. Ao contrário de fortalecer laços com novas elites, o imperador transformou a corte em um círculo fechado, incapaz de responder às demandas por modernização política. O resultado foi o esvaziamento da legitimidade do regime, mesmo entre aqueles que, em tese, deveriam apoiá-lo.
Enquanto visitava museus, academias científicas, desertos e exposições universais, o Brasil enfrentava crises políticas recorrentes: instabilidade ministerial, conflitos regionais, expansão dos movimentos abolicionistas, tensões militares e repercussões da Guerra do Paraguai.
Schwarcz mostra que as viagens, além de exibições de capital simbólico, contribuíam para a erosão da autoridade do trono. A figura que deveria representar a unidade nacional se ausentava no momento em que o Império mais precisava de direção.
A Guerra do Paraguai e o autoritarismo disfarçado
A Guerra do Paraguai é apresentada por Schwarcz como um momento de virada negativa na imagem e na governança de D. Pedro 2º. Longe de agir como um monarca moderador, o imperador tornou o conflito uma questão pessoal, insistindo na perseguição a Solano López mesmo após o desgaste militar e humano. Essa postura revelou um lado autoritário e vingativo, em descompasso com a imagem de pacificador que cultivava.
Além disso, a guerra fortaleceu o Exército, que passou a se ver como força política autônoma — e que, ironicamente, viria a derrubar a monarquia. Assim, D. Pedro 2º, ao instrumentalizar o conflito para afirmar sua autoridade, acabou cavando sua própria ruína.
O colapso de um mito — e de um regime
O final do Império, para Schwarcz, não foi meramente um golpe militar pontual, mas o desfecho de um processo de desgaste estrutural. O regime ruía sob o peso de suas próprias contradições: escravidão tardia, economia estagnada, centralização política excessiva e um soberano cujo capital simbólico já não compensava os problemas reais.
Pedro 2º se tornou, então, uma espécie de anacronismo vivo: venerado por suas barbas bíblicas, sua austeridade e seu cosmopolitismo, mas incapaz de responder a um país que demandava reformas profundas. A proclamação da República, nesse sentido, não destruiu um reinado forte: apenas empurrou ao chão um mito que já havia perdido sua função.

O mito em vez da reforma
Por fim, Schwarcz argumenta que o principal legado negativo de D. Pedro 2º foi não ter deixado instituições sólidas, mas, sim, um mito. Após sua morte, a figura do imperador foi rapidamente resgatada como redentora, especialmente em contraste com as crises da República Velha. Esse processo — descrito pela autora com referência ao mito jê de Aukê — transformou D. Pedro 2º em um “pai dos brancos” idealizado, cuja ausência passou a ser culpada pelos males nacionais.
Essa mistificação pós-morte impediu uma avaliação crítica do Segundo Reinado e atrasou debates essenciais sobre democracia, cidadania e justiça social. Em vez de um projeto republicano maduro, o Brasil ficou preso num imaginário monárquico nostálgico, que obscureceu as responsabilidades históricas do próprio imperador.
200 anos depois: por que revisitar o mito importa
No bicentenário de Pedro 2º, a leitura iconoclasta de Lilia Schwarcz não serve para demolir o passado, mas para desnaturalizar sua mitologia. Ela mostra que a história não é feita apenas de fatos, mas também de símbolos — e que muitos deles foram construídos para esconder desigualdades que permanecem vivas no Brasil contemporâneo.
Na visão de Lilia Moritz Schwarcz, o reinado de D. Pedro 2º, apesar de longo e aparentemente estável, foi marcado por contradições profundas, elitismo, passividade frente às injustiças sociais e uma estratégia de representação mais voltada à aparência do que à transformação real. Seu legado, portanto, não foi a construção de uma nação coesa e moderna, mas a perpetuação de desigualdades estruturais e a criação de um mito que dificultou o amadurecimento democrático do Brasil. A monarquia tropical, ao tentar imitar modelos europeus sem enraizar-se nas realidades locais, preparou o terreno para um futuro de instabilidade, autoritarismo e identidade política confusa.
Revisitar Pedro 2º sem a névoa da nostalgia é reconhecer que o país não foi atrasado apesar de seu monarca culto, mas com o apoio tácito de sua governabilidade conservadora. O Império não foi um sonho interrompido — foi um projeto limitado desde o início, sustentado por uma retórica civilizatória que mascarava a violência estrutural da escravidão e da desigualdade.
E talvez seja aí, como sugere Schwarcz, que reside sua lição mais atual: compreender o mito é compreender também suas permanências.
[Publicado, originalmente, no Portal Vermelho, em 1º de dezembro de 2025]

























